domingo, 17 de abril de 2011

QUEM SE IMPORTA ?















Domingo chuvoso e frio, mas ainda assim, domingo. Um domingo que promete!

Estou apressada, vou encontrar meu amigo jornalista às 11:15 h. Por que o 15? Isso me lembra Raquel de Queirós, mas ele quis assim. E eu não sou nada pontual.

Mas estou adiantada. Uma passadinha no supermercado antes, que dá tempo.
E quando subo a ladeira, a locadora de vídeo aberta me chama. Não resisto. Atraso mais um pouco. I need movie!!! A 32ª. Mostra Internacional de Cinema corre solta em Sampa. Ai que saudade do tempo em que eu ia a três sessões por dia!!!

Mas já estou esquecendo meu amigo, que deve estar plantado no meio do povão, na praça onde corre solta a “festa popular” do novo (mas já ultrapassado!) prefeito.

Saio rápido da locadora. Algumas pessoas andam pela rua. Não posso deixar de notar a mulher caída no meio fio, com uma pequena e gorda garrafa de refrigerante na boca. Ela vira o resto do líquido transparente. Água? Eu me aproximo, as pessoas passam indiferentes. Afinal, quem se importa??? É só uma mulher caída na rua...

Chego perto e o cheiro de cachaça é insuportável. A mulher não resiste a tanto álcool e perde os sentidos, atravessada na calçada, meio corpo na rua, a cabeça no meio fio, os cabelos muito lisos, em nuances que vão do castanho claro ao ruivo, entremeados por fios brancos quase imperceptíveis, estendem-se pela rua, ao alcance da roda dos carros. Tento levantá-la, mas ela não ajuda, está inerte e, apesar de magra, pesa um bocado. Os carros passam com as rodas muito próximas dos seus cabelos. Em seu interior, motoristas indiferentes.

Quem se importa? Na mureta próxima, vejo sua sacola plástica onde se emaranham peças de roupas.
Logo algumas pessoas passam por nós, um casal de evangélicos com a filha e um bebê. Peço ajuda para mover a mulher, eles estão solícitos, mas temem tocar na desconhecida caída com a cabeça no meio fio. Os números de telefone somem da minha mente. Para quem devo ligar? Então o primeiro a discar, automático, cai na casa de uma tia, e peço que ligue para a emergência, bombeiros, sei lá...

Surgem mais pessoas, espiando. As opiniões dividem-se, motoristas espiam sem intenção de parar.

 Ao longe, no topo da ladeira, alguém chega a dizer:

 - Deixa prá lá, é só uma bêbada!

 Afinal, quem se importa??? É só uma bêbada. Poderia ser alguém da sua família? Ninguém admite. E se fosse? Você gostaria que um estranho a tivesse socorrido?

 Aparece um jovem sarado, camiseta de um laranja vivo, muito animado para um domingo nublado. Esse, sim, desce. E logo me ajuda a retirar a mulher do meio fio. Decidido. Adoro! Será que, então, alguém se importa?

Vendo que o rapaz tocou na mulher e saiu ileso, o casal de crentes também se dispõe a ajudar e logo a desconhecida, ainda desacordada está deitada numa posição melhor, com sua sacola de roupas servindo de travesseiro. Observo-a, parece dormir alheia a tudo. Quem será essa mulher? Deve ter uns quarenta anos. Ou menos, talvez a vida lhe tenha deixado mais marcas que os anos. Saio do devaneio.

 Estou impaciente com a demora do socorro. Ligo novamente e ... droga!!! Minha tia nem chamou a emergência... de medo de ter que se identificar...

 Já me estresso.

 - Passe o número! Vai, me dá logo o número! Eu ligo!

 Com o tratamento de choque, ela deve ter telefonado para o corpo de bombeiros, em seguida, e quando minha ligação se completa, um tal de soldado “Miron”, dá-me a resposta, gentil e burocrática:

 - Isso não é serviço nosso, os bombeiros atendem somente casos graves...

 Estou pasma. Será que deveria deixar a mulher no meio da rua para que um carro passasse por cima e assim a ação do corpo de bombeiros se justificasse? Suas roupas são cinza como essa manhã de domingo, uma camiseta de mangas curtas, sob um agasalho e uma calça de moleton surrada, onde se percebem as manchas de urina, cujo odor se junta ao da cachaça. E me invade as narinas como se fosse natural.

 O tal soldado “Miron”, do outro lado da linha, insuportavelmente gentil, me diz:

 - Moça, ligue para a ambulância!

 Ligo novamente para minha tia e ela me informa que os bombeiros, em atitudes desencontradas, haviam dito que enviariam a guarda municipal, confirmando que, lógico (para eles!!!), o que eu pedia não era um trabalho digno da corporação.

 Afinal, quem se importa?

 Coloco minhas compras sobre a mureta e penso se a lasanha light congelada (comida de emergência!!!) já não está mole. Mas, sento-me disposta a esperar... Minha teimosia não tem limites quando se trata de princípios. ALGUÉM TERÁ QUE TIRAR ESSA MULHER DA RUA.

 Na avenida perpendicular, há poucos metros, ao lado do rio, vejo uma viatura da Guarda Municipal. A pessoa no banco do passageiro até dirige o olhar para o pequeno grupo em torno da mulher. E seu olhar encontra o meu. Mas o motorista segue impassível, rodando vagarosamente o veículo, como num passeio matinal de um domingo chuvoso qualquer.

 Penso que seria bom registrar com imagens o fato e, então, lanço mão da digital companheira, que circula comigo dentro da bolsa.

 Logo, o casal de evangélicos com a filha mostra sinais de que a família precisa ir, alimentar a criança. Eu os libero.

 - Vou ficar aqui até o socorro chegar! – digo, acomodando-me na mureta dura e úmida, ao lado da mulher. E me lembro do meu amigo, que deve estar plantado em algum ponto da praça me esperando. Ligo e explico a situação. Como bom jornalista e amigo paciente, ele me entende. E se dispõe a esperar, um pouco mais... Afinal, fazer o que?

 Mas, logo percebo que há mais gente ao meu lado. Um rapaz parece interessado no caso. Conversamos. Aproxima-se também uma conhecida e sua filha. Ficamos jogando conversa fora, enquanto, sob o vento frio, velamos o sono forçado da mulher. Vários carros passam, formando uma fila, todos os seus ocupantes olham. Espreitam. As expressões são diversas. Vão da curiosidade ao espanto. Vidros fechados, todos partem quando o sinal se abre.

 Quem se importa?

 Estou impaciente... o moço interessado sai e penso que ele também se foi... nada de bombeiros, nem de guarda municipal. Ninguém se importa. Olho os pés nus da mulher... estão inchados. E sua pele ressecada, como a das mãos, adquire um tom rosa, castigada pelo frio.

 Estou indignada e decido deixar e mulher ali, infelizmente, deitada no chão frio, e ir até a praça. Será que o prefeito pode resolver??? Será que ele se importa?

 No caminho, encontro o moço interessado no caso que, como eu, não havia desistido, e foi procurar o setor do plantão de ambulâncias da prefeitura. Afinal, estávamos ao lado do prédio do Centro de Saúde!!! Mas o que ele me diz não é nada animador, só mostra que a burocracia vai fundo... A responsável pelo setor de ambulâncias informa que não pode fazer nada, só se a mulher estiver ferida. Brincadeira? Que tal irmos até lá e acertá-la na cabeça para que um pouco de sangue corra e a ambulância venha? Não, ela não está de brincadeira e ainda completa, dizendo tratar-se de problema para o setor de assistência social da prefeitura, que, sem sombras de dúvida, não trabalha no domingo.

 O cerco se fecha, digo adeus ao moço, cujo nome nem sei, assim como nem imagino qual seja o da mulher ainda estendida no chão frio da rua, na manhã chuvosa de domingo. Mas isso tem importância? Não somos todos, antes de tudo, cidadãos do mundo? Não é isso o que penso e defendo? Não estamos de alguma forma, todos, ligados?

 Continuo meu caminho em direção à praça. Lá corre solta a “festa popular” do prefeito. Panis et circensis, como diria Caetano. Filas enormes para receber guloseimas baratas... de graça e shows de conjuntos duvidosos no palco. A música invade o ar, entremeada pela voz do locutor que diz as frases costumeiras, com a entonação esperada. O povo toma conta da praça, estou ansiosa para encontrar alguém, e as viaturas da guarda municipal estão um pouco longe, do outro lado da praça. Tenho que me desviar do povo, da menina com o tênis desamarrado, dos dois travecos lindos, mas em trajes de alto verão... Até me esqueço de procurar meu amigo ao lado da barraca de artesanato.

 Quando consigo passar pelo povo vejo dois guardas municipais em uniformes, dirigindo-se às suas viaturas que estão ao lado de ... Pasmem!!! ... de uma mini pista de esqui que o prefeito montou na praça, armações de metal enormes cobertas por placas de gelo, mantidas em água corrente por um caminhão-pipa estacionado na rua lateral. Não posso deixar de pensar nos moradores dos diversos bairros cuja água só chega de madrugada, para cessar nas torneiras logo de manhã.

 Mas, enfim, um alento. O guarda municipal negro, alto, belo e sarado é meu conhecido dos tempos de prefeitura, quando eu trabalhava na divisão de cultura. Explico o caso e ele se desculpa me repassando toda a burocracia... Jogo com a compaixão.

 - E se fosse alguém da sua família?

 Ele diz que nada pode fazer em caso de excesso de bebida. Argumento, dizendo que não sabemos se a mulher corre algum risco. Ele se rende e promete ir até o local onde está a desconhecida, estendida no chão frio.

 Pego o celular para localizar meu amigo, pois a praça está cheia. Sem perceber, estou entre as pessoas de uma fila. E uma amiga me encontra:

- O que você tá fazendo nessa fila do algodão-doce?

 Damos boas risadas e vamos juntas atrás do meu amigo. Dou alguns passos e me viro a tempo de ver a viatura da guarda municipal saindo da praça. Uma esperança...

 Enfim, encontro meu paciente amigo e logo engatamos um papo a três. Por uns divertidos momentos eu me esqueço da mulher estendida na ladeira, no chão frio, naquela manhã chuvosa.

 Mas logo avisto um senhor alinhado, traje entre o clássico e o esportivo. Não tenho dúvidas. Sem avisar meus amigos, vou a passos rápidos até ele... E chamo:

- Seu Miro!!! – é Miro Manfredi o vice-prefeito eleito. É com ele mesmo!!!

 O homem recebe-me com ares de quem está sendo cumprimentado... pela vitória nas urnas, certamente. Mostra-se altivo e orgulhoso. E me dá um beijo.

 Mal sabe que essa oportunidade de um inocente beijo pós-eleitoral em meu rosto também terá um preço. Como muitos dos votos que ele e seu companheiro de campanha receberam.

 Logo desabo a falar da mulher caída na rua, urinada e com a pele arroxeada pelo frio. Dos bombeiros, guardas municipais, setor de ambulâncias, assistência social... De todos que não se importam... Porque o sistema e a burocracia são mais importantes... que as pessoas... Falo de órgãos ligados à prefeitura que ele assumirá como vice-prefeito a partir de primeiro de janeiro do próximo ano, 2009.

 O homem ouve interessado, às vezes surpreendido, e até mostra ares de preocupação, mas no fim da conversa, está impaciente. Ensaia a saída, rápido, prometendo tomar providências. Divirto-me ao ver que já incomodo o vice-prefeito, antes da posse e durante a festa da vitória.
Volto aos meus amigos e o dia parece que vai continuar sem incidentes. Logo estamos rindo novamente, descontraídos... Sei que a mulher foi retirada da rua. Sei também que ninguém... ou quase ninguém, se importa. Mas eu me importo. E isso, para mim, é o suficiente.


Foto: Sílvia Mello

Twitter: http://twitter.com/SilviaMello23

DEUS É FIEL

sexta-feira, 15 de abril de 2011

VIVÊNCIAS
















As passagens da vida podem ser encaradas como cenas de filmes, nas quais somos protagonistas de experiências dignas de heróis do cinema, mas que ficam no anonimato do dia-a-dia.


Como heróis e heroínas de nossa própria história, podemos retirar dessas cenas as lições de aprendizado e crescimento de que necessitam...os para viver livremente, sem o peso da culpa e a limitação do medo.


Vivenciar cada momento como aprendiz da vida é ter direito ao elixir da mudança ao final de cada jornada.


A fé em si mesmo, no processo da jornada, e em algo maior do qual às vezes nos apartamos, mas nunca deixamos de fazer parte, são os requisitos para caminhar e aprofundar vivências.


A jornada vivenciada vale a pena em cada passo do processo.


Ao final, mudamos interiormente, mas ainda somos os mesmos.


Viver...vivências.
 
 
Imagem: Google
 
Twitter: http://twitter.com/SilviaMello23
 
DEUS É FIEL