terça-feira, 4 de outubro de 2011

PALAVRAS NO ESPELHO



A palavra meia
enganava
na beleza da frase

A palavra rude
lapidava
na pressa da surpresa

A palavra simples
iluminava
no saber da oferenda

A palavra nua
escondia
a clareza da intenção

A palavra lúdica
encantava
na seriedade do verso.




Imagem em novoespelhosecreto

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DEUS É FIEL


domingo, 11 de setembro de 2011

Melhor do que comprar sapatos












A manhã se entregava promissora só porque era domingo.
Sair às ruas seria natural. E eu fui levada pelas duas pequenas poudles.
Na volta do passeio, percorri as antigas e estreitas ruas do centro, de volta à casa.

E na sombra do outro lado da rua, lá estava ele, cabelos muito curtos, óculos finos, nem alto nem baixo, nem moço nem velho, mais magro do que gordo.
Um homem diante da vitrine de calçados femininos.
A cena era no mínimo interessante, o vidro espelhava sua imagem, enquanto eu diminuía meus passos, esperando que as cachorrinhas cheirassem cada centímetro das pedras do chão. E eu estivesse livre para soltar meu espírito repórter e investigar.

O que levaria um homem, numa rua semi-deserta, na manhã de domingo a espreitar tão divinamente a vitrine de sapatos de mulher, ainda que a loja estivesse fechada?

E observei atentamente, por trás dos ombros do homem, seu olhar percorrendo as inúmeras opções. Desde as sapatilhas coloridas com laços e modelos abertos na ponta, subindo para os modelos de sapatos fechados com plataforma, e os de saltos médios, elegantes, até o alto da vitrine onde figuravam os modelos com saltos muito altos e plataformas à drag queen. 

Ele se entregava embevecido à admiração por cada modelo, minuciosamente.
E eu me lançava no redemoinho da imaginação. Estaria ele escolhendo um presente para sua mãe? Hummm não! Os modelos o seduziam... Talvez para sua esposa, namorada, amante?
Se eu contasse a alguém mais malicioso cogitaria que era um fetiche por pés ou ele estava escolhendo um modelo feminino, secretamente, para si mesmo. 

A aura de mistério crescia. Eu poderia simplesmente atravessar a rua e oferecer ajuda, perguntar para quem era o presente.
Mas meu espírito detetive me manteve à distância.
Tanto que ele seguiu seu caminho, não sem antes dar uma última olhada à profusão de sapatos ao estilo Cinderela - apenas um pé de cada modelo, e certamente, imaginar a beleza de um corpo feminino conduzido por eles.

Enquanto o homem subia a rua, em direção à praça, diminuindo de tamanho a cada passo, eu me encaminhava à esquina e a dobrava no exato momento em que ele desaparecia de minha visão, no topo do calçadão. 

O homem seguiu sem me revelar seu mistério, mas observá-lo em sua devoção diante da vitrine de calçados femininos foi, naquele momento, melhor do que comprar sapatos.
Nem sempre o que se revela é melhor do que a aventura de imaginar o que seria... 


Imagem em dicafeminina

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DEUS É FIEL



Do que o amor pede... e o que pedir ao amor?


















O amor pede atração dos olhos
empatia da voz
química do gosto

 
O amor pede cumplicidade
pacto
fidelidade

 
O amor pede aceitação
compreensão
entrega

Se quer amor, não peça nada
mas não aceite o que vier

Escolha quem enxerga a sua alma
vibra com a sua voz
estremece com o seu gosto
é fiel
compromete-se com você e com a relação
elogia sua beleza
admira seu talento
aceita seu jeito único de ser
compreende seu modo de estar no mundo
respeita seus limites
e se entrega sem reservas.


Imagem: "Nu com Copos de Leite", Diego Rivera (1944)/

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DEUS É FIEL

sábado, 18 de junho de 2011

UM DIA DE CADA VEZ













Hoje eu escrevo para você que, como eu, foi afetado (a) pelo beber excessivo de alguém.
E não estou aqui para dizer das estatísticas da Organização Mundial de Saúde sobre a doença que mata “socialmente”, nem para criticar a falsa alegria dos bares, e tampouco para fazer a apologia dos sóbrios.
 
Apenas conto o que vivi...

Se você se sente inadequado nas reuniões sociais, meio peixe fora d’agua, meio estranho, se acha que sua família está diferente das outras e você mesmo começa a ter atitudes um pouco estranhas e até ser tachado de maluco, a boa notícia é que você não está sozinho e a má... é que você pode ficar maluco mesmo. Se não tomar providências.

O beber excessivo de alguém afeta quem convive com ele de diversas maneiras: provocando a solidão e o isolamento, as agressões físicas e verbais, a tortura psicológica, e se reflete nas relações sociais, na vida profissional e financeira, no relacionamento afetivo e sexual, na educação dos filhos e no bem-estar emocional da família.

Mas, o beber excessivo de alguém faz seu maior estrago no que se chama hoje, ainda que não clinicamente, de co-dependência. O termo não é novidade, mas reúne em seu significado específico, nascido do relacionamento com um alcoólico, diversos aspectos do comportamento de quem convive com um dependente, seja ele de álcool, seja ele dependente químico de qualquer natureza.

Em linhas gerais, o “co-dependente” de um alcoólico desaprende de cuidar de si mesmo para tentar mudar o outro, mudar o beber excessivo do outro e se esquece de colocar seu foco na própria vida. Suas atitudes e toda a sua estrutura emocional se alteram, provocando conseqüências que vão do isolamento social ao suicídio ou patologias graves que têm conseqüências psicológicas e físicas que podem levar à morte. Diversas doenças diagnosticadas hoje têm sua relação claramente ligada à co-dependência.

E foi lendo o livro Mulheres que Amam Demais, de Robin Norwood, que acordei definitivamente para a questão da seriedade das conseqüências de querer mudar o beber excessivo de alguém. Visto por muitos como mais um livro de auto-ajuda, esse best seller dos anos 1980, que encontrei há poucos anos, aborda com precisão a ligação entre a dependência emocional, para quem tem a predisposição, e o alcoolismo.

Ou seja, mulheres, no caso do livro, mas estende-se aos homens também, com predisposição emocional unem-se a alcoólicos e fecham o ciclo da co-dependência. Aí funciona a lei da atração. E o livro traz ainda um impressionante gráfico comparativo entre a evolução do alcoolismo no dependente e a da co-dependência em quem convive com um. Em ambos os casos, a conseqüência pode ser a morte. Por motivos diversos, na maioria das vezes não associados ao alcoolismo.

Mas o livro mostra também caminhos para a recuperação. E foi depois de lê-lo que procurei o Al-Anon, Associação de Familiares e Amigos de Alcoólicos, há alguns anos. E recuperar-se da convivência com um alcoólico é colocar o foco em si mesmo e como afirma um dos lemas do grupo: Viva e Deixe Viver.

Fácil? Não para quem está acostumado a controlar, quem está na ilusão de que pode controlar o outro e suas atitudes. Deixar a parceria com o álcool é algo que somente a pessoa pode decidir. Não cabe a mais ninguém. Reaprender a cuidar de si mesmo, no caso do co-dependente já é muito.

E a receita tem ingredientes diversos. Desligar-se emocionalmente das atitudes do alcoólico. Sair do controle, e entregar tudo o que não pode controlar a um Poder Superior, seja ele um deus, o próprio Deus, a força da natureza ou o vazio em que crê um ateu. Sem dúvida, é um caminho espiritual, não importando em que você acredite. E isso é apenas o começo.

Compartilhar experiências, ler sobre o tema e praticar a programação sugerida são os instrumentos básicos para essa recuperação. A integração quebra o isolamento e a informação combate a negação. Mas a decisão e a atitude são escolhas de cada um. Os resultados são surpreendentes. Presto serviço coordenando reuniões de estudo no Alanonport, um grupo online, e comprovei isso em depoimentos de diversas pessoas. Além da minha experiêncie pessoal.

De resto, é confiar em si mesmo e no processo da vida.

Mas o milagre é Viver um dia de Cada Vez.


Literatura não Al-Anon indicada:
Co-Dependência Nunca Mais e Para Além da Co-Dependência, de Melody Beattie, editora Record.

Imagem: sorisomail

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domingo, 12 de junho de 2011

NAMORE-SE














Há dias que o Amor ocupa espaços
não importa se em apelos de outdoor
em fotos de flores irreais
ou em clips de beijos gravados em estúdio
esqueça que há convites da propaganda

Aproveite o dia
despertado por cafés da manhã de filme
alimentado por bombons
perfumado por pétalas de rosas vermelhas
encantado por dizeres gravados em cartões
enfeitado por fitas coloridas
mimado em caixas de presente
enfeitiçado por fantasias de motel
acariciado por beijos de inverno
aqueça um relacionamento
assuste-o se for o caso
surpreenda-o
mesmo que esse amor seja só um sonho

Namore-se
desperte-se
nutra-se
mime-se
perfume-se
encante-se
enfeite-se
acaricie-se
aqueça-se
presenteie-se
surpreenda-se
diante de sua imagem no espelho

Ame-se antes
(redundante?)
espante a poeira das emoções
limpe o bolor da alma
combata a ferrugem da auto-estima
esfregue ervas de frescor na alegria
abra janelinhas de luz na casa da mudança
caminhe de olhos abertos
espreite ao redor
arrisque-se

“O Amor está no ar”...
capture-o!

 
Imagem: Google

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DEUS É FIEL

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Tecendo com Palavras



















Teci
fios em prosa
letras em linhas
costuradas
a renda da palavra
concebida
um conto tecido
em vivas cores
diálogos
cena a cena
frases nuances
num romance

Teci
amores
em finos fios
versos alinhavados
pontos de encontro
laçadas frouxas
mãos dadas
trechos em relevo
ajustes na linha
na rima
um abraço
a trama a-final

Beijos num enlace
laços em arremate

Tecido
o livro
capítulos de pano
ponto a ponto
em agulhas de papel
linhas de vida
tramada
palavras num tear
contra-ponto
o enredo
lido
na malha criada
entregue

Em olhos de leitor.


Imagem: tecendocompalavraseimagens.blogspot.com


DEUS É FIEL

domingo, 29 de maio de 2011

PRINCESA












 
Entre a mata e o prédio da antiga tecelagem onde trabalhávamos com
Cultura, seria apenas mais uma manhã de intensa atividade ao som das aulas de música, no movimento dos passos de dança e na intensidade das interpretações dos ensaios do núcleo de teatro, não fosse a cena visível na entrada dos imensos salões, antes ocupados por teares e então abrigando exposições de arte, performances de dança e peças teatrais.

Um pouco além da imensa chaminé, avistamos os quatro pequenos cães, filhotes cobertos de sarna. Como chefe na divisão de Cultura, o fato chegou-me. Que fazer? Telefonei a uma veterinária que sugeriu sacrificarmos os quatro animaizinhos. Saída fácil e higiênica, não?

SACRIFICAR OU ACOLHER?

Porém, minha consciência era outra e desafiar era o propósito. Mas quem ficaria com quatro filhotes de vira-latas, cobertos de sarna, numa manhã aparentemente despreocupada? Eu gostava de me complicar, para mim era como fazer arte. Enquanto eu pensava, dois dos cãezinhos foram levados. Sobrou o casal mais adoecido. Então, decidi que cuidaríamos deles ali mesmo, no local de trabalho. Foi uma ventania, todos ajudando, compramos os remédios, ração, leite, e começamos o mutirão: dar banho, passar a loção anti-sarna, alimentar, cuidar, brincar, dar carinho aos dois sarnentos.

Os banhos dávamos num local atrás da grande cozinha azulejada, onde havia um antigo tanque de lavar roupas. O minúsculo banheiro quase sem utilidade, ao lado das salas do prédio da administração, foi destinado a abrigar os cãezinhos à noite. E então produzimos a parafernália de jornais e paninhos para cobrir o chão e aquecê-los. E, de manhã, novo mutirão e limpeza do local. Tudo observado por alguns olhos de repreensão, expressos em vozes veladas. 

Nos finais de semana, quando o ambiente de trabalho ficava fechado, eu e uma das queridas funcionárias nos revezávamos para os cuidados e atenção ao casal de cãezinhos órfãos.

ATITUDE

Durante a semana, os cães já livres da sarna e com os pelos em crescimento, brincavam nas áreas livres daquele imenso paraíso rodeado de verde. Durante o intervalo das aulas de ginástica olímpica, as meninas saíam da sala e iam brincar com os pequenos animais, cada vez mais vivos. Numa manhã, alguém se apaixonou pelo cãozinho macho e o levou. Restou-nos a pequena fêmea, que não era o protótipo da beleza, mas tinha a determinação marcada nos pelos negros e mais brilhantes a cada dia.

Resolvemos manter ali nossa mascote. E lhe demos o nome de Princesa, nada mais justo. Comprei uma coleira e uma caminha, ambas vermelhas, e durante o dia ela permanecia em minha sala, por vezes dando mordidinhas nas canelas das pessoas a quem eu recebia para alguma reunião de trabalho. O fato foi considerado indigno e um vereador mencionou na tribuna da Câmara que eu estava transformando a Brasital – nosso local de trabalho – em um canil. 

Com o tempo, Princesa cresceu e tivemos que encontrar um lar de adoçãom onde a cachorrinha foi definitivamente.
Mas, nunca me arrependi da atitude de acolher os pequenos sarnentos. Além de alimentar minha alma de ser vivente nessa Mãe Terra, acredito ter sido um exemplo para as crianças que presenciaram todo o movimento.

PRINCESA e seu irmãozinho, salvos do abandono


Imagens: Sílvia Mello


DEUS É FIEL





segunda-feira, 23 de maio de 2011

RÉSTIAS DE VIDA



















A luta contra o câncer é uma das mais intensas em nossos dias.

Desde que minha filha tinha cinco anos queria ser médica.

Quando entrou na faculdade de Medicina já decidira cuidar de pessoas com câncer, queria se especializar em oncologia. Até terminar o curso nunca mudou de idéia.

Ao final do curso, ela decidiu cuidar de crianças... com câncer.

Além dos seis anos de faculdade, foram dois de especialização em pediatria e este ano ela está na oncologia pediátrica, em sua segunda especialização.

Seus dias e muitas noites são em contato com crianças portadoras de câncer.
 Muitas delas não saem do hospital com vida. Muitas delas, no entanto, espalham vida.

 No dia do meu aniversário minha filha me trouxe um sapinho de origami feito por uma menina de nove anos que esperava por uma medula compatível para o transplante. Que nunca chegava.

Numa noite desta semana, liguei para minha filha e ela não podia me atender. Estava ao redor de um menino de dez anos cuja vida estava sendo consumida pelo câncer, em seus últimos momentos.

Eu disse a ela que fizesse uma oração. Ela me respondeu:
 - Mãe, faça você a oração, que eu vou levar a medicação. – e desligou.

 Todos os dias oro por essas crianças.
Faça isso também.
 A Oração tem Poder onde Ninguém mais tem.


Imagem: Google
 
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domingo, 22 de maio de 2011

A ALMA DAS COISAS COMUNS














Quando nos surpreendemos com o que vemos ao nosso redor, podemos perceber o imenso caleidoscópio feito das pequenas coisas comuns que já passaram a integrar a paisagem em branco e preto do nosso dia a dia.

 
Deixar que saltem aos olhos o suspiro da manhã, o movimento dos insetos, as nuances de reflexos da luz no ar, a dormência da tarde após o almoço, as luzes que pouco a pouco tomam conta da vida ao cair da noite. Das pequenas e quase insignificantes coisas que passam por nossos olhos sem que nelas nos detenhamos, pois estamos muito focados na rotina, podemos aos poucos partir para as coisas maiores até que cheguemos às pessoas.

 O que vemos nelas não é senão nosso espelho.

 Tentar discernir os diversos sons que chegam ao mesmo tempo aos nossos ouvidos ou procurar descobrir um sutil sinal de som quando estamos em silêncio. Ouvir um rufar de asas, o sopro da brisa, os pequenos semitons que invadem o ar por entre os sons costumeiros dos locais onde passamos ou daquele ambiente no qual permanecemos a maior parte do dia. Partir dos sons quase imperceptíveis, ampliarmos nossa audição, até que cheguemos às vozes das pessoas, ao seu timbre, às palavras e seu significado.

 
E tentemos ouvi-las por um momento, sem pensar, julgar, criar novas idéias.

 
Sem falar. Calar apenas e se entregar à arte de ouvir.

 
E então, voltemos nossa sensibilidade para os odores que nos rodeiam, nem sempre aromas de flores, mas tentemos diferenciá-los, dos mais leves aos mais intensos, sem juízos. São apenas cheiros. Cheguemos aos perfumes das pessoas e em como nos relacionamos com isso.

 Podemos comandar nossas reações ao que vem das pessoas e de todo nosso ambiente externo, nem sempre precisamos reagir.

 
Podemos simplesmente perceber e integrar o que o exterior nos provoca.

 
Deixando a questão do tato e do toque nas coisas ao nosso redor para outro momento, tentemos nos voltar ainda para nossas emoções em contato com o mundo.

 
Estejamos por um dia voltados para o esforço de identificar que estímulos agem sobre nosso ser hoje, nosso corpo e nosso sentir, que afetos eles nos despertam, desde os mais insignificantes até a interação com as pessoas. Apenas sentir, perceber o que nos eleva e o que nos faz re-sentir. Sem julgamentos.

 
São apenas sentimentos que o mundo e as pessoas nos despertam.

 
Esforçar-nos por perceber o mundo externo nos leva à percepção de nosso universo interior. É nele que estão todas as explicações para o que vemos, ouvimos, sentimos. É em nós que nascem os afetos, pois é nosso centro que se afeta com o mundo externo.

 
Mas podemos escolher a forma única, determinada por nosso centro interior, de receber essa diversidade de estímulos do mundo exterior.

 
Podemos enxergar tudo isso como um grande caleidoscópio.

E escolher refletir cada cor de maneira especial, de forma a nos manter inteiros e integrados à luz que, a cada momento, se amplia e modifica, em contato com o brilho individual de cada um de nós.

Descobrir a alma das coisas comuns revela a força da nossa alma.


Imagem: Google

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DEUS É FIEL

domingo, 8 de maio de 2011

Uma MÃE sem filhos





E quando ela chegou em casa... o vazio se fez.
Os filhos lhe tinham sido tirados.
Doía como se cada membro de seu corpo lhe fosse arrancado lentamente.
Doía como se lhe bebessem o sangue.

O cansaço de um dia inteiro de trabalho, os braços estirados pelo peso da sacola das compras não lhe eram mais motivos de dor.
A dor da perda dos filhos superava todas elas. Como desespero de morte.
Os filhos eram cinco. O pai e a avó, alcoólatras. Ela era o arrimo. Ela trabalhava.
Ela era o sustento dos filhos. Ela, a mãe.
As crianças ficavam em casa com a avó e suas garrafas de pinga.
O serviço de Assistência Social visitou a família.
O Conselho da Criança e do Adolescente opinou.
O Conselho Tutelar deu o parecer.
O juiz decidiu.
Ninguém perguntou às crianças se queriam.
Ninguém reuniu a família para discutir o assunto.
Ninguém pensou em indicar um tratamento para o alcoolismo do pai e da avó.
Ninguém pensou na dor da mãe.

Aconteceu naquela tarde quente, enquanto a mãe fazia faxina numa das muitas casas...
Depois que a mãe extenuada passou no supermercado para levar a “mistura” para o jantar, o vazio se fez.
Os filhos lhe foram roubados. No calor da tarde. Sem aviso ou despedida.
Restou o vazio das camas, o oco das louças na pia.
Ficou o imenso espaço entre a porta de entrada e a parede do fundo, rabiscada com desenhos de criança.
Na pele doía uma dor dilacerante, sem metáforas, sem anestesia, sem remédio, sem cura.

 Os filhos eram cinco, como eram cinco os dedos de cada uma de suas mãos.
Mãos vazias do afago, mães vazias do toque nos cabelos de cada filho, mãos vazias da textura da pele de crianças no banho.
Cada um dos cinco filhos doía de forma diferente, como se cada dedo de sua mão lhe fosse extirpado.

E a mãe relembrava cada filho, com quem rememora uma vida inteira. A mãe tinha então cinco vidas. E cinco vidas lhe foram tiradas. “Para o bem das crianças”, lhe disseram.
E quem pensava no bem da mãe? A mãe sentia como se sua própria vida lhe tivesse sido sugada.
A cabeça da mãe estava vazia. Oca, como coco furado. Vazia das vozes das crianças. Vazia dos gritos de “manhê”. Vazia do barulho de água cristalina nos gritinhos da menina pequena.
Diante dos olhos da mãe desfilavam fantasmas dos filhos enquanto a tarde caía.

 A mãe sentada no degrau da porta da cozinha, entregue ao vazio da perda.
Por mais que a mãe tentasse não pensar, a mente da mãe insistia em narrar cinco histórias, em cenas de risos, em cenas de choro, em cenas de vida.
Vidas que tinham sido arrancadas em vida da vida da mãe.
As cenas coloriam o menino mais velho de oito anos mostrando o desenho que fizera de sua mãe, o retrato em giz de cera da mãe em frente a uma casa grande e bonita, com os cinco filhos ao seu lado. As cenas insistiam em se materializar como num filme: o menino de seis anos, trazendo uma pequenina flor da encosta da casa, “essa é só pra você, mãe”.
As lágrimas da mãe brotavam dos olhos como se pudessem lavar a dor.

 Mas as cenas não iam embora da tela da mente da mãe.
Então, a seguir, era a menina de cinco anos pedindo que a mãe prendesse seus cabelos negros e compridos que terminavam em cachos, com uma fita de cetim azul, com a qual a professora da escolinha a tinha presenteado. E como num trailler, vinha a cena seguinte: a menina de quatro anos com medo do escuro, pedindo à mãe para dormir ao seu lado na cama.

 E então, como num longo e torturante documentário, a mãe repassava a história toda dos três anos de vida da filhinha pequena, de olhos grandes como jabuticabas, linda com seus traços de ancestrais índios. A mesma menina que nascera prematuramente e, a respeito de quem, na Santa Casa da cidade, ao dar alta à mãe, o médico tentara brincar de profeta, dizendo: “Essa menina não vai vingar.” A pequena nascera aos seis meses da gravidez e a mãe a levara para a casa cinco dias após dar à luz, num leito do SUS. As contrações começaram após um longo dia de trabalho e cansaço. E a menina resistiu, após algumas horas num berço aquecido. Sequer havia outros recursos no hospital. A mãe e a vida desafiaram o prognóstico do médico. A menina, com três aninhos, era doce, risonha e rechonchuda, quando a levaram. A mãe ainda não sabia, mas jamais voltaria a avistar aqueles olhos.

 O pai assinou o pedido de adoção das duas meninas menores, quando as cinco crianças ainda estavam sob os cuidados da Casa da Criança, de onde o menino maior fugiu e foi ter com a mãe. Ninguém apareceu para resgatá-lo novamente.
Um casal de filhos foi entregue a uma irmã da mãe que morava em outra cidade.
Os anos se passaram e a dor da mãe nunca teve cura. Mas quem se importava com a dor da mãe?

 O filho maior, que cresceu sob seus cuidados, acabou preso, mal completou dezoito anos.
Os dois filhos que estavam com a irmã da mãe, voltaram ao seu convívio alguns anos depois. Ainda adolescente, a menina já é mãe de duas crianças e o menino tem o dom de desenhar muito bem. Sonha com um bom trabalho. Que nunca chega.
Uma das filhas menores foi adotada por um casal que acabou por se separar. Já moça, ela trabalha e cursa uma faculdade e hoje, finge não conhecer a mãe biológica.
Da menina mais nova, nunca mais a mãe teve notícias.
 
E a vida da mãe continua, na luta por uma vida melhor para os filhos (e agora, os netos) que permanecem com ela.
Um sonho que ainda não teve a felicidade de realizar.
Mas, a esperança nunca morre, nos olhos da mãe, cujo sorriso denuncia as rugas.

FELIZ DIA DAS MÃES 2011!

Imagens: Google


DEUS É FIEL


domingo, 17 de abril de 2011

QUEM SE IMPORTA ?















Domingo chuvoso e frio, mas ainda assim, domingo. Um domingo que promete!

Estou apressada, vou encontrar meu amigo jornalista às 11:15 h. Por que o 15? Isso me lembra Raquel de Queirós, mas ele quis assim. E eu não sou nada pontual.

Mas estou adiantada. Uma passadinha no supermercado antes, que dá tempo.
E quando subo a ladeira, a locadora de vídeo aberta me chama. Não resisto. Atraso mais um pouco. I need movie!!! A 32ª. Mostra Internacional de Cinema corre solta em Sampa. Ai que saudade do tempo em que eu ia a três sessões por dia!!!

Mas já estou esquecendo meu amigo, que deve estar plantado no meio do povão, na praça onde corre solta a “festa popular” do novo (mas já ultrapassado!) prefeito.

Saio rápido da locadora. Algumas pessoas andam pela rua. Não posso deixar de notar a mulher caída no meio fio, com uma pequena e gorda garrafa de refrigerante na boca. Ela vira o resto do líquido transparente. Água? Eu me aproximo, as pessoas passam indiferentes. Afinal, quem se importa??? É só uma mulher caída na rua...

Chego perto e o cheiro de cachaça é insuportável. A mulher não resiste a tanto álcool e perde os sentidos, atravessada na calçada, meio corpo na rua, a cabeça no meio fio, os cabelos muito lisos, em nuances que vão do castanho claro ao ruivo, entremeados por fios brancos quase imperceptíveis, estendem-se pela rua, ao alcance da roda dos carros. Tento levantá-la, mas ela não ajuda, está inerte e, apesar de magra, pesa um bocado. Os carros passam com as rodas muito próximas dos seus cabelos. Em seu interior, motoristas indiferentes.

Quem se importa? Na mureta próxima, vejo sua sacola plástica onde se emaranham peças de roupas.
Logo algumas pessoas passam por nós, um casal de evangélicos com a filha e um bebê. Peço ajuda para mover a mulher, eles estão solícitos, mas temem tocar na desconhecida caída com a cabeça no meio fio. Os números de telefone somem da minha mente. Para quem devo ligar? Então o primeiro a discar, automático, cai na casa de uma tia, e peço que ligue para a emergência, bombeiros, sei lá...

Surgem mais pessoas, espiando. As opiniões dividem-se, motoristas espiam sem intenção de parar.

 Ao longe, no topo da ladeira, alguém chega a dizer:

 - Deixa prá lá, é só uma bêbada!

 Afinal, quem se importa??? É só uma bêbada. Poderia ser alguém da sua família? Ninguém admite. E se fosse? Você gostaria que um estranho a tivesse socorrido?

 Aparece um jovem sarado, camiseta de um laranja vivo, muito animado para um domingo nublado. Esse, sim, desce. E logo me ajuda a retirar a mulher do meio fio. Decidido. Adoro! Será que, então, alguém se importa?

Vendo que o rapaz tocou na mulher e saiu ileso, o casal de crentes também se dispõe a ajudar e logo a desconhecida, ainda desacordada está deitada numa posição melhor, com sua sacola de roupas servindo de travesseiro. Observo-a, parece dormir alheia a tudo. Quem será essa mulher? Deve ter uns quarenta anos. Ou menos, talvez a vida lhe tenha deixado mais marcas que os anos. Saio do devaneio.

 Estou impaciente com a demora do socorro. Ligo novamente e ... droga!!! Minha tia nem chamou a emergência... de medo de ter que se identificar...

 Já me estresso.

 - Passe o número! Vai, me dá logo o número! Eu ligo!

 Com o tratamento de choque, ela deve ter telefonado para o corpo de bombeiros, em seguida, e quando minha ligação se completa, um tal de soldado “Miron”, dá-me a resposta, gentil e burocrática:

 - Isso não é serviço nosso, os bombeiros atendem somente casos graves...

 Estou pasma. Será que deveria deixar a mulher no meio da rua para que um carro passasse por cima e assim a ação do corpo de bombeiros se justificasse? Suas roupas são cinza como essa manhã de domingo, uma camiseta de mangas curtas, sob um agasalho e uma calça de moleton surrada, onde se percebem as manchas de urina, cujo odor se junta ao da cachaça. E me invade as narinas como se fosse natural.

 O tal soldado “Miron”, do outro lado da linha, insuportavelmente gentil, me diz:

 - Moça, ligue para a ambulância!

 Ligo novamente para minha tia e ela me informa que os bombeiros, em atitudes desencontradas, haviam dito que enviariam a guarda municipal, confirmando que, lógico (para eles!!!), o que eu pedia não era um trabalho digno da corporação.

 Afinal, quem se importa?

 Coloco minhas compras sobre a mureta e penso se a lasanha light congelada (comida de emergência!!!) já não está mole. Mas, sento-me disposta a esperar... Minha teimosia não tem limites quando se trata de princípios. ALGUÉM TERÁ QUE TIRAR ESSA MULHER DA RUA.

 Na avenida perpendicular, há poucos metros, ao lado do rio, vejo uma viatura da Guarda Municipal. A pessoa no banco do passageiro até dirige o olhar para o pequeno grupo em torno da mulher. E seu olhar encontra o meu. Mas o motorista segue impassível, rodando vagarosamente o veículo, como num passeio matinal de um domingo chuvoso qualquer.

 Penso que seria bom registrar com imagens o fato e, então, lanço mão da digital companheira, que circula comigo dentro da bolsa.

 Logo, o casal de evangélicos com a filha mostra sinais de que a família precisa ir, alimentar a criança. Eu os libero.

 - Vou ficar aqui até o socorro chegar! – digo, acomodando-me na mureta dura e úmida, ao lado da mulher. E me lembro do meu amigo, que deve estar plantado em algum ponto da praça me esperando. Ligo e explico a situação. Como bom jornalista e amigo paciente, ele me entende. E se dispõe a esperar, um pouco mais... Afinal, fazer o que?

 Mas, logo percebo que há mais gente ao meu lado. Um rapaz parece interessado no caso. Conversamos. Aproxima-se também uma conhecida e sua filha. Ficamos jogando conversa fora, enquanto, sob o vento frio, velamos o sono forçado da mulher. Vários carros passam, formando uma fila, todos os seus ocupantes olham. Espreitam. As expressões são diversas. Vão da curiosidade ao espanto. Vidros fechados, todos partem quando o sinal se abre.

 Quem se importa?

 Estou impaciente... o moço interessado sai e penso que ele também se foi... nada de bombeiros, nem de guarda municipal. Ninguém se importa. Olho os pés nus da mulher... estão inchados. E sua pele ressecada, como a das mãos, adquire um tom rosa, castigada pelo frio.

 Estou indignada e decido deixar e mulher ali, infelizmente, deitada no chão frio, e ir até a praça. Será que o prefeito pode resolver??? Será que ele se importa?

 No caminho, encontro o moço interessado no caso que, como eu, não havia desistido, e foi procurar o setor do plantão de ambulâncias da prefeitura. Afinal, estávamos ao lado do prédio do Centro de Saúde!!! Mas o que ele me diz não é nada animador, só mostra que a burocracia vai fundo... A responsável pelo setor de ambulâncias informa que não pode fazer nada, só se a mulher estiver ferida. Brincadeira? Que tal irmos até lá e acertá-la na cabeça para que um pouco de sangue corra e a ambulância venha? Não, ela não está de brincadeira e ainda completa, dizendo tratar-se de problema para o setor de assistência social da prefeitura, que, sem sombras de dúvida, não trabalha no domingo.

 O cerco se fecha, digo adeus ao moço, cujo nome nem sei, assim como nem imagino qual seja o da mulher ainda estendida no chão frio da rua, na manhã chuvosa de domingo. Mas isso tem importância? Não somos todos, antes de tudo, cidadãos do mundo? Não é isso o que penso e defendo? Não estamos de alguma forma, todos, ligados?

 Continuo meu caminho em direção à praça. Lá corre solta a “festa popular” do prefeito. Panis et circensis, como diria Caetano. Filas enormes para receber guloseimas baratas... de graça e shows de conjuntos duvidosos no palco. A música invade o ar, entremeada pela voz do locutor que diz as frases costumeiras, com a entonação esperada. O povo toma conta da praça, estou ansiosa para encontrar alguém, e as viaturas da guarda municipal estão um pouco longe, do outro lado da praça. Tenho que me desviar do povo, da menina com o tênis desamarrado, dos dois travecos lindos, mas em trajes de alto verão... Até me esqueço de procurar meu amigo ao lado da barraca de artesanato.

 Quando consigo passar pelo povo vejo dois guardas municipais em uniformes, dirigindo-se às suas viaturas que estão ao lado de ... Pasmem!!! ... de uma mini pista de esqui que o prefeito montou na praça, armações de metal enormes cobertas por placas de gelo, mantidas em água corrente por um caminhão-pipa estacionado na rua lateral. Não posso deixar de pensar nos moradores dos diversos bairros cuja água só chega de madrugada, para cessar nas torneiras logo de manhã.

 Mas, enfim, um alento. O guarda municipal negro, alto, belo e sarado é meu conhecido dos tempos de prefeitura, quando eu trabalhava na divisão de cultura. Explico o caso e ele se desculpa me repassando toda a burocracia... Jogo com a compaixão.

 - E se fosse alguém da sua família?

 Ele diz que nada pode fazer em caso de excesso de bebida. Argumento, dizendo que não sabemos se a mulher corre algum risco. Ele se rende e promete ir até o local onde está a desconhecida, estendida no chão frio.

 Pego o celular para localizar meu amigo, pois a praça está cheia. Sem perceber, estou entre as pessoas de uma fila. E uma amiga me encontra:

- O que você tá fazendo nessa fila do algodão-doce?

 Damos boas risadas e vamos juntas atrás do meu amigo. Dou alguns passos e me viro a tempo de ver a viatura da guarda municipal saindo da praça. Uma esperança...

 Enfim, encontro meu paciente amigo e logo engatamos um papo a três. Por uns divertidos momentos eu me esqueço da mulher estendida na ladeira, no chão frio, naquela manhã chuvosa.

 Mas logo avisto um senhor alinhado, traje entre o clássico e o esportivo. Não tenho dúvidas. Sem avisar meus amigos, vou a passos rápidos até ele... E chamo:

- Seu Miro!!! – é Miro Manfredi o vice-prefeito eleito. É com ele mesmo!!!

 O homem recebe-me com ares de quem está sendo cumprimentado... pela vitória nas urnas, certamente. Mostra-se altivo e orgulhoso. E me dá um beijo.

 Mal sabe que essa oportunidade de um inocente beijo pós-eleitoral em meu rosto também terá um preço. Como muitos dos votos que ele e seu companheiro de campanha receberam.

 Logo desabo a falar da mulher caída na rua, urinada e com a pele arroxeada pelo frio. Dos bombeiros, guardas municipais, setor de ambulâncias, assistência social... De todos que não se importam... Porque o sistema e a burocracia são mais importantes... que as pessoas... Falo de órgãos ligados à prefeitura que ele assumirá como vice-prefeito a partir de primeiro de janeiro do próximo ano, 2009.

 O homem ouve interessado, às vezes surpreendido, e até mostra ares de preocupação, mas no fim da conversa, está impaciente. Ensaia a saída, rápido, prometendo tomar providências. Divirto-me ao ver que já incomodo o vice-prefeito, antes da posse e durante a festa da vitória.
Volto aos meus amigos e o dia parece que vai continuar sem incidentes. Logo estamos rindo novamente, descontraídos... Sei que a mulher foi retirada da rua. Sei também que ninguém... ou quase ninguém, se importa. Mas eu me importo. E isso, para mim, é o suficiente.


Foto: Sílvia Mello

Twitter: http://twitter.com/SilviaMello23

DEUS É FIEL